O som da tempestade envolvia o velho depósito em uma sinfonia de trovões e chuva. Às vezes um relâmpago cortava os céus, como uma lança arremessada pelos Deuses. Era uma tempestade terrível, que parecia tragar todo o mundo para si. Para aqueles sob as nuvens escuras e o rugido do trovão, nada parecia real, a não ser a tempestade.
Vez ou outra um atento ouvinte poderia notar o sutil choque de pequenas peças de madeira e o fino raspar de pena sobre um pergaminho. A donzela, porém, postada diante de uma janela semi-aberta, o rosto molhado pelos respingos de chuva, não dava atenção nem à tempestade nem aos sutis ruídos que vinham do fundo do depósito. Os olhos grandes olhos verdes estavam fixos na escuridão, sem procurar nada em especial.
Ao fundo do grande depósito, um homem velho, de rosto largo e bem barbeado fazia contas em um ábaco de madeira e anotava os resultados em um pergaminho, iluminado por três parcas velas. Estava absorto em sua tarefa e não dava atenção à donzela que insistia em molhar o próprio rosto e as pontas dos cabelos, debruçada na janela.
- Lamir? – Chamou a mulher, sem tirar os olhos da escuridão.
- Sim, minha senhora? – Lamir levantou a cabeça de seus afazeres para responder à mulher, ainda com uma conta na ponta da língua.
- Que há de especial hoje? É algum dia sagrado?
- Sagrado, senhora? Não creio.
- Nada que o povo do campo celebre? Ou a data de alguma batalha memorável?
- Não há nada, senhora. Hoje é o primeiro dia de inverno. Fora isso, não há nada de especial nesse dia.
A mulher calou-se e voltou a fitar a tempestade. Havia passado o dia inteiro entre momentos de inquietude, como um falcão em uma gaiola, e momentos de contemplação que lhe tiravam a atenção de tudo ao redor. Lamir ergueu uma das sobrancelhas. Levantou-se da cadeira, pesado e cansado, e caminhou lentamente até onde estava a donzela.
- Luccia, há algo de errado? – As palavras sem o adereço usual de ‘senhora’ fizeram a donzela se virar, o rosto duro. Por um momento os dois deixaram que o silêncio caísse entre eles e apenas o tamborilar furioso da água.
- Não sei. – Falou em tom opaco, antes de desfazer a expressão dura e repetir as próprias palavras. – Não sei, velho amigo. Sinto um fisgar no peito e me vejo constantemente distraída por velhas lembranças.
O homem suspirou, aliviado. Esboçou um sorriso triste, compreensivo. Era quase um ancião, de costas encurvadas e olhos que se espremiam para poder ver, resultado de muitos anos lendo e fazendo contas sob a luz de velas. Conhecia muito bem o sentimento de nostalgia, de saudade. Não podia evitar sentir simpatia pela inquietude da jovem mulher.
- Ora! São os anos, minha senhora. Me esqueço de que não é mais a garotinha de olhos atentos e espírito livre. Você cresceu, se tornou mulher. Hoje lidera uma casa de comércio com mão de ferro. – Sua voz se sacudiu em risadas baixas, amigáveis. – É natural que, de tempos em tempos, nos deixemos vagar no passado. É o sinal de que envelhecemos, crescemos. É sinal de que temos passado.
Luccia desviou o olhar, envergonhada como uma criança que recebe a experiência da voz de um pai. Lamir se virou para voltar ao trabalho, sorrindo. Não havia nada com o que se preocupar, pensou. Ela estava apenas perdida em lembranças. Desde que não se deixasse governar por elas, Luccia, estaria bem.
Vários minutos em que só se ouvia o som da tempestade e das anotações de Lamir se estenderam. A noite já ia alta quando o velho homem se levantou, um rolo de pergaminho nas mãos. Sem dizer nada, o ofereceu à donzela, que fixou seus olhos nas anotações com bastante atenção.
Mediana era governada pelo comércio, tanto por causa da intensa atividade e posição na rota de diversas caravanas, como do ponto de vista político. As decisões políticas eram todas tomadas por comerciantes, chefes, líderes e senhores de Casas Comerciais, que acumulavam mercadorias e possuíam navios, caravanas ou depósitos.
- No último mês conseguimos juntar o mesmo que toda a estação anterior! Nenhuma outra Casa consegue crescer dessa forma!
Luccia, porém, não mostrava a empolgação de Lamir. A casa de Maer, da qual era líder, costumava fazer parte do conselho da cidade, tamanha a influência exercia. Os arrendamentos costumavam ser maiores do que o de barões ou condes, senhores de terras férteis. Muitos anos atrás, tudo havia caído por terra e a Casa lutava para se reerguer.
- Lamir, nós não vamos fechar o depósito no inverno.
- Senhora? – O velho homem pareceu surpreso. Todas as outras Casas fechavam suas negociações mais importantes durante o período do inverno. Nem sempre por causa do frio, mas por um acordo mútuo. Era uma forma de manter o poder e as maiores transações nas mãos das grandes Casas e aniquilar os comerciantes menores, impedindo que ameaçassem os mais ricos e influentes. Somente o comércio local, de abastecimento, funcionava durante o inverno.
- As estradas para o Norte não serão bloqueadas antes do meio do inverno. Vamos tirar proveito disso.
- Senhora, o acordo entre...
-Eu me preocupo com isso. Mande avisar aos capitães no porto e aos chefes de caravanas.
A idéia lhe ocorrera por impulso. Era seu dever fazer com que a Casa de Maer prosperasse, trazendo ouro não apenas para si mesma, mas para todos os que estavam sob sua proteção. Lamir parecia querer argumentar ainda. Uma ação como aquela poderia atrair a ira dos conselheiros de Mediana, que cessariam todas as atividades de suas próprias casas de comércio. Era imprudência. Talvez fosse considerado até mesmo traição! Para evitar uma discussão, Luccia começou a vestir um manto o mais rápido possível, parando apenas para guardar alguns rolos de pergaminho e pegar uma espada que estava pendurada em uma das traves do depósito.
- Nos vemos amanhã. – Abriu a porta e, cobrindo a cabeça com um capuz, saiu para a tempestade, deixando para trás um esbaforido Lamir, que tentou lhe chamar várias vezes.
Na chuva, caminhava na direção do Escudo, que era ao mesmo tempo taverna e estalagem. Nos lábios havia um sorriso orgulhoso, de quem tomou uma ação e espera as conseqüências de peito aberto.
quinta-feira, 24 de setembro de 2009
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AE!!! Mais um capítulo!
ResponderExcluirDemorou um bocado, pensei que não fosse postar. Continue o bom trabalho. Abraços!
Ahhh naum!!! Vc tá mto malvado(como todos os bons escritores)!!! Vou ter que esperar mais uma semana pra saber o que vai acontecer nessa taverna!!! Se eu morrer de curiosidade eu vou te processar viu!!!rsrsrs
ResponderExcluirBjão
Concordo com a Manu que comentou antes! Você quer matar a gente de curiosidade Hugo???? Meu deus, já estou aqui pensando mil coisas, que será que vai acontecer???
ResponderExcluirHugo, te indiquei pra um selo lá no meu blog. vai lá pega-lo pra você. bjs
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