terça-feira, 21 de setembro de 2010

Vizinhança

- Você deve me achar uma idiota.
A pergunta me atordoou pela brusquidão. Eu olhei pra ela com o canto dos olhos e só vi os cabelos pretos meio desgrenhados. Queria ver o rosto pra entender o que aquela frase queria dizer; queria ver os olhos pra tirar algum sentido. Ela havia morado por anos na casa da mãe, ao lado da minha, e nunca nos demos a chance de conversar. Acho que era por causa da diferença de idade, por causa dos filhos e do marido dela e por causa da minha falta de interesse nos vizinhos. Ela pegou o copo de cerveja, mas não bebeu, ficou segurando com a mão esquerda e me estendeu a direita.
- Como assim?
Passei pra ela o cigarro, que ela alojou entre os dedos e levou à boca antes de continuar.
- Por ter me divorciado assim, do nada.
O casamento dela sempre me pareceu estável. Sabe, com aquele olhar casual de vizinho distante, eu achava que os dois se davam bem, os filhos eram felizes. Não eram ricos, mas o sujeito tinha lá seus projetos de vida e tocava eles pra frente. Abriu uma sorveteria que, ouvi dizer, tava dando certo. Às vezes o via brincando com os filhos e, mesmo quando dividia a casa com a sogra, tava sempre sorridente. Era educado e me cumprimentava de manhã cedo, quando ele saía pra comprar pão e eu madrugava pra ir à aula.
- Nada a ver. Isso nem é da minha conta...
Ouvi uma risada fria e cortante e me controlei pra não virar o rosto.
- Isso é da conta de todo mundo. Todo mundo comenta da vida dos outros e a minha é o babado da hora. Vai dizer que não ouviu nada? Nem comentou nada também? Aposto que deu opinião pros outros vizinhos.
- Eu? Eu não. Mal ouço essas coisas, Daniela.
Era verdade. Eu nunca fui de dar papo pros vizinhos. Acho quem por causa da minha idade, ninguém prestava muita atenção a mim também. Ouvia essas notícias quando conversava com a diarista, na hora do almoço, e raramente dava muita atenção. Pedi o cigarro de volta e traguei fundo.
- Ele é um bom sujeito, sabe? É bom pai, me tratava bem. Tinha comprado a casa pra onde a gente se mudou. Ele me ama.
Fiquei em silêncio. A noite ao nosso redor ficou densa e terrível, a fumaça do cigarro parecia um fantasma nos rodando até que uma brisa a levou pro alto até desaparecer. Tomei um gole longo do meu copo e ela se virou pra me olhar. Não ousei fazer o mesmo.
- Não vai me perguntar por que, então, pedi o divórcio?
Ela mesma respondeu à própria pergunta, ainda segurando o copo meio vazio na mão esquerda.
- Vou me casar com outro cara.
Essa eu já tinha ouvido. O que a diarista me contava era que a Daniela tinha pedido o divórcio e se mudado de volta pra casa da mãe. Pouquíssimo tempo depois (talvez uma semana ou duas) estava grávida de outro sujeito. Enchi meu copo de novo e ela voltou a olhar pra madrugada. Estávamos sentados no passeio, uma garrafa de cerveja entre nós.
- Me apaixonei por ele. Quase à primeira vista. Era como se eu não pudesse resistir. Acho que não quero resistir.
Hesitei por um momento, mas achei que a franqueza dela me dava liberdade pra ser franco também e falar o que me vinha à cabeça.
- E os meninos?
Ela ficou calada por um tempo longo. Eu já ia me arrependendo de ter falado quando ela esvaziou o que restava do copo num só gole.
- Os meninos estão bem. Encontram sempre com o pai. Vão continuar sendo filhos dele.
Enchi o copo dela até a metade, depois esvaziei o que restava da cerveja no meu. Então joguei a guimba do cigarro na rua. A brasa fez um arco luminoso e aterrissou quase no passeio oposto. Ficou lá, como se estivesse olhando pra gente. De alguma forma eu achava que a Daniela não fosse capaz de uma conversa íntima. Acho que eu a imaginava sem profundidade, sem palavras, sem motivo. Virei o rosto finalmente e vi que era bonita. Boca pequena, mas lábios bem definidos. O queixo fino estava apoiado sobre os braços cruzados em cima dos joelhos.
- E aí? Qual o nome dele? Desse cara?
Fingi que me importava. Sei lá por que perguntei, mas ela não respondeu. Ficou quieta um longo tempo olhando pro nada. Eu olhei a brasa do cigarro enfraquecer até apagar.
- Você acha que eu vou ser feliz?
Respirei fundo e não respondi. O que me surpreendeu foi o tom da voz dela. Quando perguntam uma coisa dessas, as pessoas estão incertas, com medo do futuro, das próprias escolhas. Querem confirmação de que estão certas. A Daniela fez a pergunta quase como se não quisesse resposta alguma, num timbre suave, casual. Ela não esperava a minha resposta.
- Eu não sei.
Virei o meu copo. Um gato tigrado atravessou a rua correndo e depois parou na esquina. Ela não pareceu notar o gato ou a minha resposta. O bicho saltou numa árvore, depois pra um muro e seguiu seu caminho.
- Eu fiz o que achei certo. Me apaixonei e vou seguir o que sinto. Não me arrependo.
Senti pena do ex-marido e achei que ela era uma idiota completa por largar uma vida inteira por uma coisa tão nova, tão incerta. Ela é uma mulher adulta, tinha filhos, a vida já construída. Naquele momento ela estava usando shorts e uma camiseta apertada. Pensei naquela história toda, no que os vizinhos deviam estar comentando entre si, no que a diarista diria na próxima terça-feira. Não quis imaginar o que os filhos estavam passando ou o que a Daniela tinha dito pra mãe quando bateu à porta de mala e cuia. Nada daquilo era da minha conta, mas, na minha opinião, ela estava cometendo um erro sem igual.
Era tarde e eu tinha que acordar cedo na manhã seguinte, por isso me levantei da calçada, dei boa noite, entrei em casa e fui dormir.