quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Parte II - Falcão Engaiolado

O som da tempestade envolvia o velho depósito em uma sinfonia de trovões e chuva. Às vezes um relâmpago cortava os céus, como uma lança arremessada pelos Deuses. Era uma tempestade terrível, que parecia tragar todo o mundo para si. Para aqueles sob as nuvens escuras e o rugido do trovão, nada parecia real, a não ser a tempestade.
Vez ou outra um atento ouvinte poderia notar o sutil choque de pequenas peças de madeira e o fino raspar de pena sobre um pergaminho. A donzela, porém, postada diante de uma janela semi-aberta, o rosto molhado pelos respingos de chuva, não dava atenção nem à tempestade nem aos sutis ruídos que vinham do fundo do depósito. Os olhos grandes olhos verdes estavam fixos na escuridão, sem procurar nada em especial.
Ao fundo do grande depósito, um homem velho, de rosto largo e bem barbeado fazia contas em um ábaco de madeira e anotava os resultados em um pergaminho, iluminado por três parcas velas. Estava absorto em sua tarefa e não dava atenção à donzela que insistia em molhar o próprio rosto e as pontas dos cabelos, debruçada na janela.
- Lamir? – Chamou a mulher, sem tirar os olhos da escuridão.
- Sim, minha senhora? – Lamir levantou a cabeça de seus afazeres para responder à mulher, ainda com uma conta na ponta da língua.
- Que há de especial hoje? É algum dia sagrado?
- Sagrado, senhora? Não creio.
- Nada que o povo do campo celebre? Ou a data de alguma batalha memorável?
- Não há nada, senhora. Hoje é o primeiro dia de inverno. Fora isso, não há nada de especial nesse dia.
A mulher calou-se e voltou a fitar a tempestade. Havia passado o dia inteiro entre momentos de inquietude, como um falcão em uma gaiola, e momentos de contemplação que lhe tiravam a atenção de tudo ao redor. Lamir ergueu uma das sobrancelhas. Levantou-se da cadeira, pesado e cansado, e caminhou lentamente até onde estava a donzela.
- Luccia, há algo de errado? – As palavras sem o adereço usual de ‘senhora’ fizeram a donzela se virar, o rosto duro. Por um momento os dois deixaram que o silêncio caísse entre eles e apenas o tamborilar furioso da água.
- Não sei. – Falou em tom opaco, antes de desfazer a expressão dura e repetir as próprias palavras. – Não sei, velho amigo. Sinto um fisgar no peito e me vejo constantemente distraída por velhas lembranças.
O homem suspirou, aliviado. Esboçou um sorriso triste, compreensivo. Era quase um ancião, de costas encurvadas e olhos que se espremiam para poder ver, resultado de muitos anos lendo e fazendo contas sob a luz de velas. Conhecia muito bem o sentimento de nostalgia, de saudade. Não podia evitar sentir simpatia pela inquietude da jovem mulher.
- Ora! São os anos, minha senhora. Me esqueço de que não é mais a garotinha de olhos atentos e espírito livre. Você cresceu, se tornou mulher. Hoje lidera uma casa de comércio com mão de ferro. – Sua voz se sacudiu em risadas baixas, amigáveis. – É natural que, de tempos em tempos, nos deixemos vagar no passado. É o sinal de que envelhecemos, crescemos. É sinal de que temos passado.
Luccia desviou o olhar, envergonhada como uma criança que recebe a experiência da voz de um pai. Lamir se virou para voltar ao trabalho, sorrindo. Não havia nada com o que se preocupar, pensou. Ela estava apenas perdida em lembranças. Desde que não se deixasse governar por elas, Luccia, estaria bem.
Vários minutos em que só se ouvia o som da tempestade e das anotações de Lamir se estenderam. A noite já ia alta quando o velho homem se levantou, um rolo de pergaminho nas mãos. Sem dizer nada, o ofereceu à donzela, que fixou seus olhos nas anotações com bastante atenção.
Mediana era governada pelo comércio, tanto por causa da intensa atividade e posição na rota de diversas caravanas, como do ponto de vista político. As decisões políticas eram todas tomadas por comerciantes, chefes, líderes e senhores de Casas Comerciais, que acumulavam mercadorias e possuíam navios, caravanas ou depósitos.
- No último mês conseguimos juntar o mesmo que toda a estação anterior! Nenhuma outra Casa consegue crescer dessa forma!
Luccia, porém, não mostrava a empolgação de Lamir. A casa de Maer, da qual era líder, costumava fazer parte do conselho da cidade, tamanha a influência exercia. Os arrendamentos costumavam ser maiores do que o de barões ou condes, senhores de terras férteis. Muitos anos atrás, tudo havia caído por terra e a Casa lutava para se reerguer.
- Lamir, nós não vamos fechar o depósito no inverno.
- Senhora? – O velho homem pareceu surpreso. Todas as outras Casas fechavam suas negociações mais importantes durante o período do inverno. Nem sempre por causa do frio, mas por um acordo mútuo. Era uma forma de manter o poder e as maiores transações nas mãos das grandes Casas e aniquilar os comerciantes menores, impedindo que ameaçassem os mais ricos e influentes. Somente o comércio local, de abastecimento, funcionava durante o inverno.
- As estradas para o Norte não serão bloqueadas antes do meio do inverno. Vamos tirar proveito disso.
- Senhora, o acordo entre...
-Eu me preocupo com isso. Mande avisar aos capitães no porto e aos chefes de caravanas.
A idéia lhe ocorrera por impulso. Era seu dever fazer com que a Casa de Maer prosperasse, trazendo ouro não apenas para si mesma, mas para todos os que estavam sob sua proteção. Lamir parecia querer argumentar ainda. Uma ação como aquela poderia atrair a ira dos conselheiros de Mediana, que cessariam todas as atividades de suas próprias casas de comércio. Era imprudência. Talvez fosse considerado até mesmo traição! Para evitar uma discussão, Luccia começou a vestir um manto o mais rápido possível, parando apenas para guardar alguns rolos de pergaminho e pegar uma espada que estava pendurada em uma das traves do depósito.
- Nos vemos amanhã. – Abriu a porta e, cobrindo a cabeça com um capuz, saiu para a tempestade, deixando para trás um esbaforido Lamir, que tentou lhe chamar várias vezes.
Na chuva, caminhava na direção do Escudo, que era ao mesmo tempo taverna e estalagem. Nos lábios havia um sorriso orgulhoso, de quem tomou uma ação e espera as conseqüências de peito aberto.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Notas e Explicações

Antes de mais nada, agradeço aos que tiraram alguns minutos de seu tempo pra ler. Sei que propaganda é um saco (peço desculpas por isso) mas eu ainda não tinha feito divulgação propriamente do Blog.
Respondendo às perguntas e sugestões: minha intenção era a de fazer posts uma vez por semana, como se fosse uma novelização ou algo assim. Infelizmente, minha própria desorganização (tanto pessoal como de escritor) acaba me pondo em xeque. Procurarei manter um ritmo de, pelo menos, uma vez a cada quinze dias pra continuar a história. Nesse interím, vou procurar colocar notas e observações da minha parte, às vezes explicando um pouquinho de onde tirei as idéias ou outra coisa do cenário.

Bom, essa primeira parte já tava pronta há anos. É uma história de lentíssima produção, pelo menos no início. Juro que, quando comecei, só queria descrever a chuva. O viajante, os guardas e o misterioso benfeitor que abre a porta vieram quase que naturalmente. Exatamente por isso, essa falta de planejamento, é que eu demorei muito tempo pra compor uma trama, ligar os personagens, amarrar o cenário.
Não tenho a menor intenção de apresentar pra vocês, caros leitores, um novo mundo de fantasia medieval, com longuíssimas descrições daquilo que, hoje em dia, nem é mais tão desconhecido assim (querendo ou não, todos que escrevemos esse tipo de coisa somos produto de Tolkien e Robert E. Howard). Minha proposta é a de contar uma história que seja interessante.

Por enquanto, sem desenhos do Barba. O cara tá tão ocupado quanto eu em outros projetos.
Agradeço a atenção e paciência de vocês.

Um enorme abraço e até semana que vem!

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Primeira Parte - O Viajante Sob Tempestade

A noite era de tempestade. O dia havia sido claro, sem nuvens e levemente frio, apesar de o sol ter estado visível o tempo todo. Durante todo o dia as pessoas trabalharam; no cuidado com a terra, na alimentação de porcos ou bois e galinhas. Mulheres cozinharam, cuidaram dos filhos e mantiveram a casa limpa, enquanto homens construíram pontes ou restauraram as que estavam danificadas e carregaram pesados sacos de grãos para depósitos e buscaram água e trocaram mantimentos. Havia sido o primeiro dia de inverno, apesar de o frio ainda não incomodar. Mas a noite era de tempestade.
Nuvens negras surgiram no céu como que saídas do nada assim que o sol começou a sumir nas montanhas do oeste. Quando a lua encoberta era a única luz no céu negro, as nuvens lançaram chuva e granizo, assustando animais, destruindo telhas e telhados e mantendo qualquer um que pudesse caminhar à noite em casa, onde as lareiras queimavam e soltavam fumaça. E todos os moradores de Mediana ficaram contentes em permanecer em seus lares.
O som de cascos foi abafado pelo barulho da chuva que caía com força no chão e da água que escorria pelos dutos e calhas, então os guardas do portão não ouviram o estranho que chegou coberto por uma capa pesada e montado em um grande cavalo castanho. Como era noite, os portões estavam fechados e o estranho simplesmente esperou que algum vigia percebesse a sua chegada. Mas a chuva, o frio e a noite é capaz de tornar os guardas desleixados e ninguém notara o cavaleiro solitário à espera de abrigo da chuva, frio e noite.
O viajante logo se impacientou e bateu com o cabo da lança que carregava contra portão da cidade. Os vigias, surpresos por alguém pedir entrada em Mediana àquela hora da noite e no meio de uma tempestade, acabam por se demorar deixando o viajante ainda mais impaciente. O cavaleiro então tirou uma trombeta de dentro da sua capa e tocou uma nota clara, mas ainda assim capaz de ser ouvida a muitas léguas de distância.
- O que é isso? Quer acordar a cidade toda com essa coisa? - Pergunta o guarda que fora ao muro ver quem batia no portão.
- Se for preciso para que abram o portão e me deixem entrar, sim! - Respondeu uma voz firme de homem e o estranho moveu sua cabeça para ver o guarda, que o fitava da muralha acima.
Por um momento o guarda não fez nada. Apenas ficou parado, olhando aquele homem estranho montado em um cavalo enorme que aparecera no meio da noite. Via-se que era alguém alto, de ombros largos. A lança que usara para bater no portão estava na mão esquerda e a trombeta branca, na mão direita. Era possível perceber a forma de um escudo empacotado em um manto, pendendo na sela. “Esse pode significar encrenca”, pensou o guarda, mas não fez qualquer menção de espantá-lo.
- Como é! Vão me deixar entrar ou terei que esperar até o amanhecer para encontrar um lugar seco? - Disse o estranho depois de bufar impacientemente.
- Até o amanhecer? Ora! Se você não puder entrar agora como vai entrar ao amanhecer? - Perguntou o guarda, pensando ser muito esperto. Mas o cavaleiro apenas suspirou, cansado, e seu cavalo pateou o chão.
- Porque, meu caro vigia, ao amanhecer vocês abrirão os portões, como fazem todos os dias, para que comerciantes possam entrar e sair com suas mercadorias e para que os agricultores da região possam comprar os mantimentos para o inverno e, no meu caso, para que os viajantes possam entrar e se secar depois de uma noite pouco hospitaleira na chuva.
O guarda ficou novamente em silêncio. Não sabia o que fazer. Não era permitida a entrada de estranhos à noite, mas não faria qualquer diferença impedir o homem de entrar, se ele entraria de qualquer forma quando os portões fossem abertos. Era difícil decidir e o guarda manteve-se imóvel, pensando. Antes que o viajante se impacientasse de novo, uma pequena porta, presa ao portão, range, estala e se abre. O vigia parecia tão surpreso quanto o homem que estava à chuva quando a luz de uma tocha convidava o abrigo de um teto.


-Minhas sinceras desculpas, Cavaleiro. Mantemos os portões da cidade fechados à noite, para evitar ataques de goblins. Infelizmente, isso também impede os viajantes cansados de entrarem.
O cavaleiro desceu do cavalo, que havia guiado para dentro dos portões da cidade através da portinhola. O homem que havia aberto a portinhola era velho, com os cabelos brancos e ralos e vestia uma pesada capa para se abrigar da chuva. Seus olhos eram de um azul profundo e seu rosto, bem barbeado. Trazia certa autoridade no olhar, embora fosse quase imperceptível por trás das roupas e cabelos molhados.
- Sou Sagres da casa de Melvar - disse por fim e esperou que o homem se identificasse.
Um silêncio mortal pairou sobre os dois homens e só se escutava o som da chuva batendo na madeira, acima nos muros, onde os guardas vigiavam a noite. Por um breve momento, o viajante fez menção de tirar a pesada capa e revelar o rosto encoberto pelo capuz, mas não o fez.
- Agradeço por ter me tirado da chuva e me dado a chance de dormir sob o teto quente de uma estalagem. Mas peço que me permita ocultar minha identidade por mais algum tempo. Tenho fortes motivos para isso e lhe garanto que, logo, irei me revelar para todos os que quiserem saber quem sou.
Sagres escutou aquelas palavras com gravidade, mas não demonstrou outra emoção. Manteve o olhar fixo no estranho à sua frente, os olhos azuis ilegíveis. O cavaleiro imaginou se havia ofendido o homem, mas ele nada disse sobre isso.
- Homem!Lembre-se que chega a essa cidade como um estranho, à noite. Não lhe peço a história de sua vida, nem seus motivos para chegar sob uma tempestade. O que peço é alguma identificação, seja ela qual for.
O cavaleiro pareceu prender a respiração debaixo do manto. Mas logo resolveu que Sagres tinha razão, ao menos em parte, por isso desembrulhou o escudo, atrelado à cela do cavalo e revelou um brasão, pintado na madeira.
- Sou um Cavaleiro da Ordem da Espada Branca, senhor. Venho a esta cidade em paz, isso eu lhe garanto. E, enquanto permanecer, eu juro cumprir as leis e praticar o bem. Perdoe-me a rudeza de não ter me apresentado propriamente e peço que não julgue os meus irmãos da Ordem pelo meu erro.
Os olhos azuis de Sagres pareceram cintilar e novamente, fitou o recém-chegado fixamente. “Ele sabe quem eu sou”, pensou o cavaleiro. “Talvez eu deva me revelar e as minhas intenções”. Mas antes que fizesse qualquer coisa, Sagres falou, em tom cordial.
- Saudações, Cavaleiro da Espada Branca! Você é bem-vindo, seja qual for a hora. Espero que aprecie a sua estada em Mediana. Se procura uma boa cama, fogo na lareira e uma refeição prodigiosa, sugiro que vá até a Taverna do Escudo, a melhor da cidade. Se quiser, posso guiá-lo, embora seja apenas a duas ruas para o leste.
-Agradeço sua preocupação Sagres da casa de Melvar, mas conheço as ruas de Mediana e também o caminho para o Escudo. Agradeço, mais ainda, a permissão para omitir o meu nome, por enquanto.
-Não agradeça cavaleiro, pois esse favor vem com um preço, que você ainda não conhece. Amanhã, depois do anoitecer, conversaremos e, então, tudo será esclarecido. Até lá, espero que sua estada em Mediana seja proveitosa. Descanse bem.
Com essas palavras, Sagres partiu em direção à chuva e, depois de alguns momentos, desapareceu na escuridão. O cavaleiro ficou perturbado com as implicações daquela condição, mas seguiu silenciosamente pela chuva que ainda caía, em direção ao Escudo, a melhor taverna de Medianna.