sábado, 18 de dezembro de 2010

Invisível

Sentado, imóvel, via tudo sem ser visto. Ou melhor: era visto, mas não era notado. As pessoas passavam ao redor, frenéticas e ignorantes. Alguns lhe jogavam moedas, numa piedade condicional: pagavam para não ter de olhar os olhos. Parecia cansado, o rosto marcado, a barba longa e suja, os fios brancos na cabeça, dentes faltando e os anos sobre os ombros. Mas não era cansaço. Era algo mais profundo: um terror abjeto de ser esquecido. Se não fosse mais lembrado, continuaria a existir?
Na verdade, só existia por mera formalidade, porque era como se não estivesse realmente lá. Enquanto pensava nisso, virou-se e me fitou com assombro. Era como se ele nunca tivesse visto alguém de terno antes. Não! Era como se nunca tivesse sido visto por alguém de terno antes!
Por um segundo, seus olhos cintilaram, esperançosos. Então paguei a conta do meu café, fui embora e nunca mais pensei sobre ele.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Quero Que Meu Peito
Se Abra
Se Rasgue
Se Fira
Em Fenda
E Finda Vida
Que Não Pulsa
No Peito
Meu Corpo
Não Cabe
Meu Choro
Não Sabe
Na Mão
Meu Sangue
Enxagüe e Ralo
Bebo Farto
No Gargalo
E Morro

sábado, 2 de outubro de 2010

Janelas ao Entardecer

Fuzileiro sem família
Destrava o rifle e chora;
Menina de fita no cabelo
Espera o namorado e canta.
Noite de lua cheia
Promete curar as dores,
Amores que não passaram.

Sentado, fuma o velho
O outro lado do tabuleiro,
Vazio.
De pé, no ponto do ônibus,
Pai espera a canseira
E o filho resmunga.
A prece reclamona
De um padre chega
Aos anjos alados sem pena alguma.

Ano novo vem
E sem esperar por festa
Se acomoda e não avisa.
O rapaz sente o peito
Despedaçado, bebe, esquece
Sem lembrar que foi feliz.

Felicidade corre de mim
E alcança um choro;
Faz feliz uma criança
E eu deixo de lado
O mau humor.

Pela janela da sala
A moça vê a vida,
Os outros a passar
Mas não escuta
O violeiro em serenata.

Sobram as faltas
Que faz você
Se fartar de choro
Riso, pena, rio
E pensa bem
Do que ta rindo!

Olha o pôr do sol
que lindo!

Da janela da cozinha

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Vizinhança

- Você deve me achar uma idiota.
A pergunta me atordoou pela brusquidão. Eu olhei pra ela com o canto dos olhos e só vi os cabelos pretos meio desgrenhados. Queria ver o rosto pra entender o que aquela frase queria dizer; queria ver os olhos pra tirar algum sentido. Ela havia morado por anos na casa da mãe, ao lado da minha, e nunca nos demos a chance de conversar. Acho que era por causa da diferença de idade, por causa dos filhos e do marido dela e por causa da minha falta de interesse nos vizinhos. Ela pegou o copo de cerveja, mas não bebeu, ficou segurando com a mão esquerda e me estendeu a direita.
- Como assim?
Passei pra ela o cigarro, que ela alojou entre os dedos e levou à boca antes de continuar.
- Por ter me divorciado assim, do nada.
O casamento dela sempre me pareceu estável. Sabe, com aquele olhar casual de vizinho distante, eu achava que os dois se davam bem, os filhos eram felizes. Não eram ricos, mas o sujeito tinha lá seus projetos de vida e tocava eles pra frente. Abriu uma sorveteria que, ouvi dizer, tava dando certo. Às vezes o via brincando com os filhos e, mesmo quando dividia a casa com a sogra, tava sempre sorridente. Era educado e me cumprimentava de manhã cedo, quando ele saía pra comprar pão e eu madrugava pra ir à aula.
- Nada a ver. Isso nem é da minha conta...
Ouvi uma risada fria e cortante e me controlei pra não virar o rosto.
- Isso é da conta de todo mundo. Todo mundo comenta da vida dos outros e a minha é o babado da hora. Vai dizer que não ouviu nada? Nem comentou nada também? Aposto que deu opinião pros outros vizinhos.
- Eu? Eu não. Mal ouço essas coisas, Daniela.
Era verdade. Eu nunca fui de dar papo pros vizinhos. Acho quem por causa da minha idade, ninguém prestava muita atenção a mim também. Ouvia essas notícias quando conversava com a diarista, na hora do almoço, e raramente dava muita atenção. Pedi o cigarro de volta e traguei fundo.
- Ele é um bom sujeito, sabe? É bom pai, me tratava bem. Tinha comprado a casa pra onde a gente se mudou. Ele me ama.
Fiquei em silêncio. A noite ao nosso redor ficou densa e terrível, a fumaça do cigarro parecia um fantasma nos rodando até que uma brisa a levou pro alto até desaparecer. Tomei um gole longo do meu copo e ela se virou pra me olhar. Não ousei fazer o mesmo.
- Não vai me perguntar por que, então, pedi o divórcio?
Ela mesma respondeu à própria pergunta, ainda segurando o copo meio vazio na mão esquerda.
- Vou me casar com outro cara.
Essa eu já tinha ouvido. O que a diarista me contava era que a Daniela tinha pedido o divórcio e se mudado de volta pra casa da mãe. Pouquíssimo tempo depois (talvez uma semana ou duas) estava grávida de outro sujeito. Enchi meu copo de novo e ela voltou a olhar pra madrugada. Estávamos sentados no passeio, uma garrafa de cerveja entre nós.
- Me apaixonei por ele. Quase à primeira vista. Era como se eu não pudesse resistir. Acho que não quero resistir.
Hesitei por um momento, mas achei que a franqueza dela me dava liberdade pra ser franco também e falar o que me vinha à cabeça.
- E os meninos?
Ela ficou calada por um tempo longo. Eu já ia me arrependendo de ter falado quando ela esvaziou o que restava do copo num só gole.
- Os meninos estão bem. Encontram sempre com o pai. Vão continuar sendo filhos dele.
Enchi o copo dela até a metade, depois esvaziei o que restava da cerveja no meu. Então joguei a guimba do cigarro na rua. A brasa fez um arco luminoso e aterrissou quase no passeio oposto. Ficou lá, como se estivesse olhando pra gente. De alguma forma eu achava que a Daniela não fosse capaz de uma conversa íntima. Acho que eu a imaginava sem profundidade, sem palavras, sem motivo. Virei o rosto finalmente e vi que era bonita. Boca pequena, mas lábios bem definidos. O queixo fino estava apoiado sobre os braços cruzados em cima dos joelhos.
- E aí? Qual o nome dele? Desse cara?
Fingi que me importava. Sei lá por que perguntei, mas ela não respondeu. Ficou quieta um longo tempo olhando pro nada. Eu olhei a brasa do cigarro enfraquecer até apagar.
- Você acha que eu vou ser feliz?
Respirei fundo e não respondi. O que me surpreendeu foi o tom da voz dela. Quando perguntam uma coisa dessas, as pessoas estão incertas, com medo do futuro, das próprias escolhas. Querem confirmação de que estão certas. A Daniela fez a pergunta quase como se não quisesse resposta alguma, num timbre suave, casual. Ela não esperava a minha resposta.
- Eu não sei.
Virei o meu copo. Um gato tigrado atravessou a rua correndo e depois parou na esquina. Ela não pareceu notar o gato ou a minha resposta. O bicho saltou numa árvore, depois pra um muro e seguiu seu caminho.
- Eu fiz o que achei certo. Me apaixonei e vou seguir o que sinto. Não me arrependo.
Senti pena do ex-marido e achei que ela era uma idiota completa por largar uma vida inteira por uma coisa tão nova, tão incerta. Ela é uma mulher adulta, tinha filhos, a vida já construída. Naquele momento ela estava usando shorts e uma camiseta apertada. Pensei naquela história toda, no que os vizinhos deviam estar comentando entre si, no que a diarista diria na próxima terça-feira. Não quis imaginar o que os filhos estavam passando ou o que a Daniela tinha dito pra mãe quando bateu à porta de mala e cuia. Nada daquilo era da minha conta, mas, na minha opinião, ela estava cometendo um erro sem igual.
Era tarde e eu tinha que acordar cedo na manhã seguinte, por isso me levantei da calçada, dei boa noite, entrei em casa e fui dormir.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Dragão Invisível

Guerreiro de espada no cinto e escudo de aço.
Menino de espada de plástico e escudo invisível:
cavalga gravetos e mata dragões!

Picareta é quem diz que dragão não existe.

Vilão é quem diz:
“Deixa disso, menino! Essa princesa só ta dentro da sua cabeça!”

Mentiroso é quem finge que não vê coragem de verdade;
pra acreditar no que todo mundo finge que não existe.
Porque, pra matar dragão invisível e amar princesa que não existe,
Precisa acreditar que é corajoso.
Vigarista é quem nunca brincou de espada e dragão.

domingo, 4 de julho de 2010

Saudações!

Bom, o último post foi bizarro. Definitivamente não vou mais mostrar aqui minhas reflexões de boteco porque não tem nada a ver mesmo com o que eu quero e gosto de trazer pro blog. Da proxima vez vou deixar esse tipo de coisa de lado.
Falando em postar, estou planejando colocar mais prosa num futuro próximo. Alguns dias atrás tive uma idéia bacana pra escrever uma história longa mas que ao mesmo tempo não me exige comprometimento (que eu já não tenho mesmo).
São uma série de contos curtos que podem ser lidos separadamente e fora de ordem, mas lidos em seqüência formam uma narrativa só. Tenho cá algumas idéias pra começar (algumas linhas já rabiscadas no papel) por isso creio que em breve volto a postar histórias do gênero "capa e espada". A idéia de propor várias histórias curtas e descontinuadas para contar uma só narrativa maior não é nova. Também me passou pela cabeça fazer o mesmo que R.E Howard, de escrever várias histórias fechadas sobre um mesmo personagem sem que haja, de fato, uma continuidade direta entre uma história e outra.
E talvez eu ainda faça isso. Idéias, idéias, idéias e muita preguiça.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Reflexão Sobre Latidos Noturnos

São os cães, vira-latas, em uníssono desacordo, quem chamam a solidão.

Ao clamar pela Lua, em desespero e paixão, declaram-se irremediavelmente solitários e, ao fazê-lo, tornam impossível qualquer mudança para o contrário. Uivam, gritam, chama e sofrem pelo inalcançável: a Lua. Se rebaixam, ao se considerar de uma estirpe inferior e, portando, fadada a uivar e rastejar pelo objeto de desejo. É o distanciamento, produzido e nutrido pelos próprios cães, que os rebaixa, humilha e faz sofrer para sempre a dor da separação... A perpétua solidão... O vazio, vácuo do espaço sideral que separa cães e Lua.

O que falta aos cães? Será a astúcia para atravessar o espaço negro até a Lua? Ou os meios para realizar tal empreitada? Ou será a coragem e a ousadia?

Àqueles acostumados a uivar, enfurnados em sua tristeza, paralizados pela falta que não é preenchida, é impossível mover na direção da luz, sublime e prateada. A separação e o luto são por demais cômodos; é como se a ascensão fosse uma medonha transformação e a busca por isso fosse a mais dolorosa das provações. Tal é o pavor dos cães diante da possibilidade de alcançar a luz. Um pavor tamanho que só pode ser igualado à dor da distância e da falta da Lua.

A própria Lua, em sua palidez fria, parece não ouvir os uivos em desespero. Age como se fosse incapaz de notar os pulguentos aos seus pés; como se fosse incapaz de se mover de seu lugar no céu. Mas essa é a mais cruel das mentiras: a Lua ouve cada ganido desesperado por atenção e pode, a qualquer momento, se aproximar ou se afastar, porém, deliberadamente, não o faz. Se mantém imóvel, distante, mas à vista. Não demonstra nada, mas só pode se regozijar com o sofrimento que causa. Afinal, por que outro motivo permitira o desespero de tão barulhentos carentes? Talvez sinta pena ou orgulho por ter tantos admiradores. Mas não creio. Crer em tal faria da Lua uma vaidosa fútil. Embora haja um toque sombrio de vaidade em sua luz, nada há de fútil na Lua. Há, isso sim, um prazer sinistro na cacofonia de solidões que alimenta a pureza da luz.

E de tudo sabem os cães! Não são idiotas, afinal de contas. Sabendo da triste realidade a que estão confinados, uivam à Lua, em um misto de solidão, sofrimento e clamor por ajuda. E a Lua, fria e prateada, se abstém.



Bar do Valle, 21/Dez/2009

quarta-feira, 23 de junho de 2010

solteiro e só

Viu o sol nascer
regado a pão e leite,
uma noite mal dormida
e o sono nas cobertas.

Pegou o ônibus na penumbra
não pensou nos filmes
nem nos amores
perdidos e alugados,
nas gavetas desarrumadas
armário desmontado.

O colchão vazio não mente
a distância nem a companhia.
É solidão nos dias frios,
é a garota nos dias tristes
e a falta dos cigarros.
O cinzeiro e as garrafas
vazias num anagrama;
liberdade e sonhos perdidos.

Quem não dorme sonha?
Quem não ama sofre?
Quem não tem fome come?
Sede de cigarro barato
sem isqueiro.
Viu a lua surgir nas nuvens
a apatia de um dia mal vivido
e o sonho?

O tempo passou
e as mulheres levaram
amores e amigos, a alma
e a peça da geladeira quebrada.
Um coração dormente de penas
Galinha assada na páscoa.
Morar com a mãe
Nunca mais.

domingo, 20 de junho de 2010

Cabelo de Noite Passada

Moça do cabelo feito de noite,
do sorriso feito de doce
do rosto feito de maçã
e do beijo feito de sorte.

Vai pra terra da fantasia
sozinha
e volta perdida,
feliz da vida.

Acorda em paz,
perde o sono
e ganha um sonho.
Sentada
no balanço da vida
contando estrelas
que o céu azul
não mostra -
deixa o embalo
levar o que foi.

Deixa pra trás!
Se o que passou
não volta mais
vale a pena correr?
É apressa, o passo,
não perder o trem.

Perdido sou eu
por gostar de você.
Perdido é o tempo
que passou pra nós.
Perdida a nossa infância,
a sua inocência,
e o meu cata-vento
ficou naquele
banco da igreja.

Você quem gostava
da camisa xadrez;
faz lembrar pipoca
e a festa junina
que eu não te beijei.
Do guaraná quente
que a gente dividiu
e a cerveja gelada
que você não quis.

Deixei os anos,
cresci a barba
e te convidei
pra um cinema.
Você não foi.

Saiu dançando,
mundo afora em claro.
Madrugada gasta
com a luz acesa.
Não vi mais aquela
sua saia amarela,
não encontrei mais
sua mãe, seu pai.
Não lembro
do nome do seu tio,
o chato. Seu primo,
o alto.

Te vi outro dia
dobrando a esquina
e não chamei.

Seu nome ficou mudo
e o meu calou a fundo.
Mudou de rumo
e eu te perdi

de vista.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Rumos

Tem um bom tempo que não posto por aqui comentários e reflexões minhas. A razão é porque eu acho muito chato; as pessoas não querem saber das minhas mandingas e da minha vida triste (pelo menos enquanto eu não for um best seller, hohoho).

Além do mais, se eu resolvesse postar um parágrafo que fosse mais pessoal, teria de me explicar a respeito da história que eu disse que ia continuar. Por isso, por um tempo, preferi fingir que não tinha acontecido nada, mas a verdade é que não posso ignorar isso pra sempre. Algumas pessoas estavam acompanhando aquela história e eu pisei na bola com isso. Se eu trabalhasse pra alguma pulp fiction eu estaria bem encrencado agora e provavelmente não conseguiria mais publicar.

Por isso gostaria de pedir desculpas a quem esperava pela continuação da história do Cavaleiro. A verdade é que eu não tenho disciplina pra oferecer uma publicação periódica. Enquanto eu não tiver aquela história bastante adiantada, infelizmente, não posso apresentá-la aqui.

O que me leva aos rumos que pretendo dar ao blog. Como perceberam, os últimos posts foram todos de poesias (tirando o último mesmo, Manchester Noir), mas isso não quer dizer que eu vá fazer desse um blog de poesias. A experiência com histórias continuadas me mostrou que eu preciso, pelo menos por um tempo, me concentrar em coisas fechadas, curtas. E é o que vou fazer, pelo menos aqui. Então por um bom tempo ainda, postarei histórias curtas, poesias, enfim, coisas que dá pra ler em uma sentada rápida em frente ao PC.

E se algum dia eu resolver dizer que vou tentar de novo apresentar uma história longa, me envergonhem ao perguntar da história do cavaleiro, que eu vou pensar duas vezes antes de dar prosseguimento.

E obrigado a quem continua a ler as coisas, mesmo depois de tanta enrolação.

domingo, 16 de maio de 2010

Black Manchester (Manchester Noir)

A fumaça do cigarro cobre minha visão por alguns instantes confusos. Minhas mãos estão ocupadas demais segurando as cervejas, então deixo o cigarro pendurado na boca por enquanto. Isso mesmo amigo. Cervejas. No plural. Não sei por que cargas d'água a gostosa da July resolveu aceitar meu convite justo hoje. No início eu achei que seria um problema, já que hoje é a final do campeonato e o Manchester é o favorito, mas a garota pareceu bem disposta a vir pro pub sujo onde eu assisto os jogos. Bom, não vou mesmo questionar a sorte. July e Manchester.

-Dois 'pints' de cerveja. Um pra mim, outro pra você. - Coloco as cervejas na mesa. Qual o problema das mulheres em sentar no balcão, afinal de contas? Fica mais perto da TV! Tiro o cigarro da boca e me sirvo de um punhado de amendoins.

-Você fuma demais, sabia? Devia parar! Isso faz mal! - Ih, saco! O velho papo do cigarro. Isso me enche o saco. Qualquer um seria uma chaminé ambulante se tivesse o emprego que eu tenho. Detetive particular. Igualzinho ao velho Holmes, meu caro. Se a July não fosse tão gostosa e não tivesse só vinte e dois anos, eu não aguentaria um minuto de reclamação. Por isso eu faço a coisa mais madura pra esse tipo de ocasião: ignorar a falação e prestar atenção no jogo, concordando com a cabeça de vez em quando. Entre um passo mal feito e outro tiro alguns segundos pra olhar o decote dela. Tamanho 44, pela merda de Jesus.

-Ei Will! Tá me escutando? O que acha de ir em uma galeria de artes comigo essa Sexta? Eu tenho um convite sobrando e... Bem, você vai ter que arranjar uma roupa. É de gala.

-Claro docinho. - É um jogo importante. Não posso ficar dando atenção pra July assim. Engraçado, nunca conheci uma mulher que ficasse calada durante um jogo de futebol. Tirando a Cindy, claro, mas ela tem 130 quilos de pura gordura. Ugh.

-Sabe, Will, um dia a gente podia sair pra jantar... Tipo, em um lugar legal. - Odeio quando mulher reclama do pub. Maneio a cabeça de leve. É um jogo tenso e o Manchester teve um primeiro tempo fodido de ruim. É nessa hora que eu me amaldiçôo por ter seguido a carreira de detetive criminalista investigativo. É de se esperar que você tenha bons contato, não é? Acesso a informação privilegiada, esse tipo de coisa. Bom, deixa eu te dizer uma coisa meu chapa: eu acionei cada contato que eu tenho pra descobrir pra descobrir alguma dica sobre o jogo, mas tudo o que eu ouvi foram boatos sobre russos em operações ilegais e misteriosas. E eu lá quero saber de russos? Russos pagam a minha cerveja? Com metade das minhas economias apostadas no Manchester eu não tenho a menor paciência pra russos. Merda.

-Tem um restaurante francês... Abriu recentemente, sabe? Fica perto da galeria... Se você fizesse as reservas hoje acho que a gente consegue lugares pra Sexta... - Metade das minhas economias no brejo e ela quer que eu pague um jantar caro no restaurante de Pierre Pierrot, o maior trapaceiro nas mesas de pôquer ilegal de Londres. O desgraçado me arrancou a outra metade das minhas economias semana passada.

-Claro, docinho! Vou ligar pra lá assim que chegar em casa.- Tento me focar nas coisas boas da July. Seios 44. Doze anos mais nova. Vai ser um bom encontro, se ela não pirar com o restaurante chinês barato que cabe no meu bolso. Quando moleque eu vivia assistindo àqueles filmes noir e tudo o que eu sempre quis foi ser detevive. Silhuetas esculturais pela porta de vidro do escritório, investigar o crime organizado, se metar com os figurões de verdade. Desenhos animados incriminados injustamente. Esse tipo de coisa, sabe? Mas a vida real não são os filmes e o que acaba aparecendo de verdade são esposas infiéis, maridos paranóicos, adolescentes em fuga, animais de estimação e uma iguana incriminando o pet shop (não pergunte). E sabe o que é pior? Oito minutos pra acabar o segundo tempo e o Manchester perdendo por dois gols.

-IIirgh! Willie, eu acho que esses amendoins estão velhos! Veja, eu peguei um mofado! - O que diabos ela viu em mim?

domingo, 2 de maio de 2010

Restos

De resto só me resta
o peço que não
me esqueça.
Que não me veja,
que não me ouça,
que não me salve.

Quem precisa de você?

segunda-feira, 22 de março de 2010

Outro Dia

Cruel o destino que a tirou de mim.
Canhestra a faca e o punhal
que imaginei;
te levaram pra longe e eu fiquei
dormindo na sala, esperando.

o dia passar
a lua chegar
a porta bater
a música tocar

Você chegar de repente
pra mudar meu dia,
cansar meu ouvido,
contar da vida
e sair dançando, saltitante.

Salto o tempo
paro o verbo
repito e penso.

As tardes de preguiça quente
te chamam de saudade
e solidão, sua irmã.
Solitário abraço do sol
em mim, sem ti. Em nós, só eu.
Sou eu quem perco o sono;
evoco fantasmas,
assombrações ao pé de sua cama.
Chamo os teus tormentos
e me atormento no seu lugar.
Vivo seus temores
pra que viva sem mim,
pra que viva sem ti,
contigo sem estar.

Espectro da vil tormenta!
Da vida em vida afora,
jogada fora, quebrada
janela do alto andar.
Fechada estava a porta.
Escabrosa falta!
Negação!
Eis o motivo da tua partida:
o meu coração partido.

Fui medo.
De mim e de ti.
Comigo e contigo.
Sem.

Se em ti não te cansas
não me importo.
Vou me casar nos teus braços.
Ó aperto de mim que não há.
Agarro-te mesmo assim.
Não solto os dedos brancos
trêmulos, imóveis, belos.

Tua beleza imoral
me provoca o peito,
suspira.
Tua beleza imortal,
só minha e sozinha.
Só eu vejo a sua

(alma que voa pra cima)
(calma silenciosa e paz)
(se vai sem me deixar)
(se me deixa em tombo)
(eu tombo seu nome)
(em um túmulo sem anjo)
(serei teu guarda, só teu)
(e não deixarei que parta)
(sem que esteja pronta)
(sem que esteja farta de mim)
(sem que eu esteja)

É nossa a valsa fria
diz adeus sem despedir
e continua minha alegria
sempre-viva de enfeite.
Não se vá! Não se vá!
E fica um outro dia.
Toda minha, toda minha.