terça-feira, 13 de outubro de 2009

Parte III - Taverna

O calor do fogo pode ser sentido, espalhado pelo salão, enquanto o cheiro de carneiro assado e cerveja fresca convidam quem passa pela porta a entrar e participar das canções. A voz do bardo invade a noite, saindo pelas janelas e um anão resmunga, enquanto pede mais uma caneca de cerveja. Tavernas eram redutos de bebedeira, canções e divertimento. Existiam vários lugares assim em Mediana, que ofereciam toda a sorte de serviços e prazeres, desde as prostitutas mais caras, até entorpecentes vindos do sul distante. Ao contrário dessas outras tavernas, porém, o Escudo se abstinha de oferecer qualquer outra coisa que não fosse boa bebida, comida e alojamento para viajantes cansados. Além, claro de Thil-Lenii.
Thi-Lenii era um elfo, um filho do povo sem idade, como chamavam os humanos. O passar dos anos era mais lento para Thi-Lenii, deixando-lhe uma eternidade para aperfeiçoar sua arte, que era a música e a narração de histórias. Quando o elfo cantava ou tocava a lira era possível ver os olhos dos expectadores perderem o foco, enquanto mergulhavam em ruínas perdidas e lugares antigos. Mesmo sob o som da tempestade e o ribombar do trovão, o Escudo tinha todas as suas mesas ocupadas e seu salão abarrotado de pessoas em pé, para ouvir o elfo transformar sonhos em música e poesia.

A música continuou naturalmente quando a figura envolta em um pesado manto, encharcado de chuva, adentra as portas, onde pára, tentando não tremer de frio e aguarda que seja atendido. Logo um jovem criado, usando um avental bordado com um escudo em forma de um losango e se oferece para guardar o manto do viajante, enquanto aponta para uma figura carrancuda sentada por trás do balcão, com quem a hospedagem deveria ser negociada. Com um suspiro, o homem atravessa, encharcado, a multidão que se punha entre ele e um quarto aconchegante. A lira ressoava pelo ambiente e não era ouvido o som de nenhuma conversa, bebericar ou raspar de talheres, tamanha a atenção dos freqüentadores para com o elfo que se apresentava em um tablado no centro do salão redondo. Sem se importar com o cansaço ou com as roupas molhadas, o viajante parou em frente ao anão e escutou. Não havia nada que pudesse quebrar a harmonia das cordas ou a voz que cantava em uma língua estranha, antiga. Era como se nada fosse mais natural do que escutar aquela música lenta, constante, alimentada por mãos ágeis e versos sólidos. Somente quando o silêncio prenunciou a explosão de palmas e vivas é que, como se tirado de um transe, o cavaleiro viu-se diante de uma criatura baixa, de nariz adunco, olhos negros como piche, barba cinzenta e pele marrom.
-Saudações, mestre anão. Preciso de um quarto e um lugar nos seus estábulos, urgentemente!E de um banho quente, se o tiver. – titubeou o cavaleiro, como se ainda estivesse caminhando em um sonho.
-Hnf! Precisa mesmo. Principalmente do banho, se me perguntar. – Resmungou o impaciente anão, sem fazer qualquer menção de atender ao pedido do homem.
Os anões são seres de baixa estatura e orgulhosas barbas. São conhecidas por sua habilidade como artesãos, ferreiros, armeiros e cervejeiros. Têm personalidade dura como a pedra e a paciência de uma montanha. Era comum, também, que fossem pessoas de poucas palavras e comunicação cortada, de má vontade em serem tirados de seus pensamentos.
-Logicamente, pagarei adiantado pela minha estadia e a de meu cavalo. – Disse o cavaleiro, tirando uma bolsa de moedas de dentro do manto.
-É esperado que sim. – Resmungou mais uma vez o anão, ainda sem se preocupar em providenciar um quarto, banho ou qualquer outra coisa que o cavaleiro poderia parecer precisar.
O cavaleiro ficou sem saber o que fazer. Olhou para os dois lados, à procura de ajuda, mas não encontrou nenhuma. Na verdade, alguns dos outros clientes do Escudo se divertiam com a situação, rindo do embaraço do viajante.
-Não se importe com Regrin! – Disse uma voz bem mais receptiva – Ele apenas está mal-humorado porque sua diversão predileta ainda não veio esta noite. Sou Thil-Lenii, e lhe dou as boas-vindas ao Escudo!
O cavaleiro se virou e viu um elfo, uma cabeça mais baixo que ele e magro, os cabelos da cor de ouro claro, brilhantes sob a luz das lamparinas e velas. Thil-Lenii dava uma sensação de grandiosidade, como os de seu povo costumam fazer e, pela segunda vez aquela noite, o viajante sentia que podia ser reconhecido por aqueles olhos dourados que pareciam ser capazes de perscrutar os cantos mais profundos da alma dos homens.
-Não me diga que desistiu de hospedar-se, só porque teve o azar de conversar com um anão rabugento e mal-humorado!Você deveria saber melhor, estranho, que os elfos são muito mais dispostos a oferecer hospitalidade! – Thil-Lenii parecia achar divertida a hesitação do recém-chegado.
- Há! A hospitalidade de um elfo é como o presente de um feiticeiro. Sempre há um preço. – Disse o anão, gargalhando enquanto se afastava na direção de uma das despensas arrastando os pés e levava consigo uma espumante caneca de cerveja.
-Não. – Começou o cavaleiro com a voz um pouco falha, sem saber o que o anão quis dizer – Não, de forma alguma. – Continuou um pouco mais confiante. – Eu quero um quarto e um lugar no seu estábulo, para o meu cavalo. E um banho bem quente, para agora, se possível.
O elfo sorriu, com a lira ainda em uma das mãos, receptivo ao hóspede do Escudo.
-Certamente viajante!Seu banho estará pronto em alguns minutos. Seu quarto estará à sua espera logo após o banho e seu cavalo já está em nosso estábulo. Agora, se puder entregar sua bagagem para Nott, o criado, e esperar alguns minutos enquanto os preparativos tomam conta... – O homem se espantou com a eficiência de Thil-Lenii, em aprontar tudo aquilo em questão de instantes, desde que entrara na Taverna.
-Obrigado! – Foi tudo o que conseguiu dizer, enquanto entregava a bolsa, encharcada para o criado que o atendera antes. Em apenas alguns instantes, o viajante foi novamente chamado por Nott, que o guiou ao quarto onde dormiria e, depois, aos aposentos dos banhos, onde uma banheira cercada de vapor convidativo esperava para ser usada.