A Carol era uma menina linda. Tinha
cabelo de cachinhos e olhos que mudavam de cor em dias chuvosos. Usava anéis em
todos os dedos e camiseta dos Ramones por baixo do uniforme. Nunca falava
comigo, nem com ninguém com quem eu andava. Era a minha paixonite durante a
sétima série e tinha o dom de sempre aparecer quando eu era rejeitado para o
time de futebol na educação física ou então quando eu derramava coca-cola nas
calças. De todas as paixões da minha vida, ela foi a mais secreta, porque eu
não tinha coragem nem para olhá-la, evitava o seu nome.
Foi a primeira vez que
reencontrei uma paixonite de colégio quando ela passou por mim com um grupo de
amigas, rindo de uma cena ridícula, dessas típicas de quando se reúne gente
bêbaba sem pretensão de maturidade. O protagonista da cena, claro, era eu.
Disputava um concurso de vira-vira com uns calouros da faculdade enquanto
tentava acender um cigarro pelo lado do filtro.
Apesar do ridículo
mundano, senti como se fosse visitado
pelo fantasma do natal passado, de Dickens; um momento de resignificação
filosófica, de reavivamento do passado, vendo a história viva bem à minha
frente como um espectro de carne e osso saído de um sonho que tive na aula de
Historiografia.
E ela pareceu não me
notar. Ria da palhaçada toda, mas não me reconhecia.
Ganhei aquele concurso
no final das contas e achei que aquele fantasma não mais me assombraria.
Passei a ver a Carol às
vezes no corredor da faculdade ou na fila do xérox, mas nossos olhos nunca se
encontravam. Nunca dissemos bom dia um pro outro. Ela não usava mais camiseta
de banda e nem tinha os tantos furos na orelha quanto na adolescência. Eu ainda
era magricela, de óculos, calças desbotadas. Ainda tentava ler Niesztche e Marx
escondido e Homem Aranha às claras.
Por vezes ela se sentou
ao meu lado na cantina, sozinha, enquanto eu esperava o início de um período de
aulas acompanhado por um café ruim. Nessas horas eu mantinha a atenção ferrenha
em algum texto ou trabalho que estivesse preparando para apresentar. Não que eu estivesse ocupado demais, eu tinha
era medo de olhá-la.
Só que dessa vez não
era paixão. Era a estranheza de sentir um passado tão próximo ao presente. Era
ver ruir a crença de que eu tinha mudado desde os catorze anos, era me sentir
de novo o moleque desajeitado no pátio do colégio, com o coração ardendo por um
beijo, fingindo que não ligava para o som de um nome martelando na testa.
Ela era a lembrança
viva de tudo o que eu achava ter esquecido, da pessoa que eu acreditava ter
superado. O choque do ontem com o hoje e o contraste de dois momentos que eu
julgava tão diferentes na minha vida. Assim eu me agarrava, inconsciente, ao
que, de fato, era novidade em mim desde aqueles tempos: fumava. Todas as vezes
que ela aparecia, acendia um cigarro. O sujeito do xeróx sempre me olhava puto
e os seguranças, quando me viam, pediam educadamente para eu, ou apagar o
bendito, ou sair do corredor fechado. Ainda assim ela não me notava. Tirando
uma vez que fez uma cara feia pra fumaça que eu admirava espiralando no ar frio
de junho. Mas aí ela notou foi a fumaça.
A Carol sempre andava
com uma turba de amigas barulhentas e bonitas. Nunca descobri que curso ela
fazia ou sequer se estudava com essas amigas. Eu já tinha tomado toco de metade
delas, depois de ter ficado com uma certa Alice, que parecia ter alguma relação
com uma delas. Eu nunca soube se era porque a tal Alice tinha me marcado como
gado dela ou se porque eu dei o bolo num dos outros encontros com ela, porque
eu tinha começado a namorar.
Aliás, eu namorava quando
vi a Carol de novo. E namorava sentindo aquela aproximação do meu passado.
Fingia que não me borrava de medo do momento em que as duas estivessem num
mesmo ambiente, porque aí quaisquer mentiras que eu contava para mim mesmo
seriam postas à prova, me revelando como o sujeito desprovido de intenções e
ambições de seis anos antes.
Acho que era o conflito
que todo mundo sente ao analisar o passado sob uma perspectiva diferente da
época em que viveu. E, quando é sobre você, não existe análise clínica que salve
a imparcialidade. É medo de não só se ver despido, mas de se descobrir no
ridículo do próprio íntimo.
Assim sobrevivi ao
semestre e me vi confortável, aos poucos, na situação. Afinal, se a Carol não
se lembrava de mim, que passado havia para ser desnudo? Enquanto eu pudesse
manter as lembranças dentro, o passado era um fantasma mudo e invisível, uma
mera presença que se tornava cada dia mais débil. A Carol ia fazendo parte do
presente: da miríade de rostos semi-conhecidos que mudavam como um caleidoscópio
que forma imagens que a gente nunca se lembra muito bem de como eram.
Tão relaxado que
fiquei, acabei cometendo um único deslize ao verbalizar o que ninguém sabia,
ninguém tinha como saber e não devia saber: que eu conhecia a Carol. Foi um
amigo que disse que estava afim "da loirinha bonita". Estávamos
jogando truco num boteco, comíamos o pior frango empanado que já saiu de uma
panela e bebíamos a cerveja mais gelada e barata da cidade.
"Quem é
essa?"
"Você não conhece.
Uma bonita, é da sala da Alice, que você pegou no festival de inverno do ano
passado."
"Uma que veio de
transferência? Conheço sim."
A apropriação que o
sujeito fez me irritou na hora. Como ele ousava dizer que eu não conhecia ela?
Como tinha a pachorra de desconstruir o passado que queimava tanto na minha
memória, mesmo que em segredo absoluto? Um passado tão presente e de tormento
tão constante que já fazia parte de quem eu me tornava?
"O nome dela é
Carol. Conheço. Estudou no mesmo colégio que eu."
O assunto ficou por aí
depois de uma exclamação de desinteresse por parte do meu amigo. E, naquele
dia, eu pensei bastante sobre a importância que eu dava pra uma menina que nem
ao menos sabia meu nome e uma importância que, eu tinha certeza, era desprovida
de paixão. Era só uma neurose minha, que devia ter mais a ver com uma crise de
identidade típica dos vinte anos do que com o drama de um segredo esquecido, de
um fantasma. Afinal, o que era a Carol pra mim? Não era nada. Tinha sido um
sentimento reprimido, mas que eu tinha esquecido com o passar dos anos. Tinha
afogado com outros amores.
E aquilo me relaxou,
apesar de o meu parceiro de truco ter ficado desconsolado com a minha
desatenção reflexiva, que resultou na nossa derrota por lavada. Nem me importei
quando o amigo me disse que ia levar a Carol pra quebradeira de fim de semestre.
Achei bobagem o meu medo de ver a a menina e a minha namorada sob o mesmo teto.
Já tinha deixado essas
coisas pra lá quando entrei na tal quebradeira de mãos dadas e camisinha no
bolso. Assistia ao show, quando o tal amigo chegou na festa, sozinho, e veio me
cumprimentar. Na hora a namorada conversava com uns amigos de quem eu não
gostava. Acabei perguntando:
"Cê não vinha
acompanhado, cara?"
Ele me explicou que o
esquema parecia não ter dado certo, mas que ainda ia colocar todas as fichas
numa última investida quando ela chegasse. Desejei boa sorte e conversamos
sobre o campeonato brasileiro e sobre as outras mulheres na festa, sobre as
notas que tinham saído e sobre o último filme do Almodóvar, que não tinha sido
tão bom quanto os outros.
Lá para tantas da
noite, eu e a minha namorada estávamos brigados e ela tinha ido embora puta da
vida comigo, que insiti em ficar, dizendo que aquilo não ia estragar minha
noite quando era só uma desculpa para ficar muito bêbado e remoer a raiva. Tinha
saído pra fumar e já estava no segundo cigarro seguido quando alguém parou ao
meu lado e me olhou fixamente, causando aquele incômodo de ser observado que só
piora quando a gente tá com raiva.
"Eu acho que te
conheço de algum lugar."
A Carol chegava, como
sempre, nos momentos em que eu me sentia mais idiota. E o pior! Escolheu justo
aquele pra se lembrar de mim e vir conversar. Olhei pra ela, meio sem paciência
e respondi que também já a tinha visto antes.
"A gente tem o
mesmo período livre na Quarta. Você sempre senta perto do canteiro, fica de
frente pra cantina."
"Não, isso não. Eu
te conheço da escola."
Me senti estúpido por
só ter notado então que ela tinha alisado os cabelos. Usava uma camiseta dos
Ramones, mas não era tão bonita quanto antes, quando tinha cachos. Franzi o
cenho, fingindo pensar, enquanto olhava pro rosto dela, angulado com o queixo
fino e o mesmo ar superior de quem conhece algum segredo valioso e não pretende
dividir com ninguém.
"Você tinha o
cabelo diferente, né?"
Ela riu, passando os
dedos pelas mechas.
"Tinha sim. Você
também, aliás."
Expliquei que tinha
cortado o cabelo, que na escola era comprido, apenas alguns meses antes e ela
respondeu que tinha ficado melhor. Como corei daquela frase vazia e sem
pretensão! Mas estava escuro ou então eu já devia estar bêbado demais para que
isso fosse confundido com a embriaguez do álcool.
Fizemos um minuto de
silêncio desconfortável. O meu cigarro pendendo inútil, porque eu evitava a
careta de desgosto dela. Mas como o papo não parecia ter vias de continuar e
ela continuava por lá, mandei um foda-se mental e traguei, soprando a fumaça
para longe dela.
"Tem um cigarro
aí?"
A pergunta dela atraiu
a minha atenção. Tirei o maço vazio do bolso e mostrei como pra provar que
aquele era o meu último. Ela olhou por cima do ombro, para onde a festa
acontecia e as amigas estavam, onde o meu amigo esperava por ela sem chegar em
mais ninguém, onde a minha namorada não estava mais. O fez como alguém que olha
por cima do ombro antes de transgredir ou como uma criança fazendo arte.
Sem mais nem menos,
tirou o cigarro da minha mão. Eu percebi que ela não usava batom, que os seios
tinham crescido, que não estava mais alta e que eu usava a mesma camiseta que
usei no dia em que comecei a namorar. E ela fumou daquele jeito desconfiado,
como se estivesse se escondendo ali, no passeio, de frente pra rua onde pessoas
passavam.
Me lembrei do que a
minha namorada disse quando me apaixonei por ela. Que dividir um cigarro era
coisa íntima. Só faziam os amantes mais apaixonados, as pessoas mais próximas.
Que era como um beijo de fumaça, que desvanecia esquecido na noite até restar
uma guimba apagada sobre paralelepípedos e a lembrança. E, justamente por não
ter outras provas, já que as guimbas são recolhidas ao final de cada festa, é a
lembrança mais verdadeira e o beijo mais ardente.
A Carol sorria pra mim
com os olhos, enquanto passávamos o cigarro um para o outro, como se fosse um
baseado. Quando acabamos, ela fez questão de atirar a brasa ainda acesa à
noite.
"Não pode contar,
tá? Minhas amigas acham que eu parei."
Eu ri e prometi que não
ia dizer pra ninguém.
"Vai ser o nosso
segredo."
Entramos na festa
juntos justamente quando uma banda começava a tocar, abrindo com "Come
Together" e ela dançava pra mim.