Primeiro o firmamento.
Incontáveis donzelas, levadas em sacrifício em nome de Deuses esquecidos, deitadas lado a lado. Um desespero mudo, conformado, os membros torpes, os olhos secos. Seus corpos moles se tornaram maciez arenosa. Corações duros, a rocha inquebrável. Dos ossos brancos o diamante e dos olhos verdes as esmeraldas. De seus cabelos, escuros, o tronco das árvores, a relva fresca.
Em seguida, os mares e as águas. As montanhas.
Todos os amantes desesperados, virgens por suas donzelas, famintos e perdidos. As lágrimas salgadas cobriram os vales e os abismos mais profundos e seus suspiros fizeram as marés, as ondas, os terremotos. Cobriram os cadáveres de suas amadas, em pranto franco; fugiam da separação da morte. E assim, as montanhas e montes altos. Da saliva de sua fome, de seu desejo inconsumo, brotou as nascentes dos rios.
O céu, as nuvens.
Os cigarros de mil poetas e tantos boêmios: assim as nuvens, espiraladas, sopradas por pulmões doentes e hálitos azedos. Com elas, foi-se todo sentimento volúvel, entre o humor negro e a leveza da paz; entre a raiva trovejante e o medo de amar. Todos os furacões e brisas, vieram dos sussurros declamados, dos suspiros doídos, dos gritos amargos. O ar que respira é poesia.
Do sol. Da lua. Da noite. Do dia.
Da mais ardente paixão (todos os Tristãos, todas as Isoldas) foi arrancado o fogo vivo, incinerante e então tornado em bola, levada ao céu pelos ventos dos cigarros. O calor e a luz, aqueceram toda a criação. Mas de onde foi tirado a paixão, restou a solidão fria e uivante, que preencheu o espaço entre o calor e o firmamento. E como a solidão, que busca e afasta a paixão, a escuridão buscou se aproximar do sol e o sol se afastou da escuridão e assim os dois dançaram sobre o espaço vazio pela primeira vez. Quando a solidão se abateu sobre os poetas, foi-lhes tirada toda inspiração e posta num pedestal prateado para refletir o amor. E assim a Lua, que faz cães uivar, rouba o brilho do sol, mas permanece fria, na escuridão solitária.
Bestas e feras.
O sémem de todos os amantes virgens, espalhado pelo vento e pelas águas, fecundou o solo, mas não sem se misturar e se retorcer, tomando formas diversas. E os poetas, vendo que nova vida se formava, inventaram-lhe sons sem sentido, que chamaram de nomes. Também separaram as formas pelos sons, que lhes moldaram garras e cascos, para que rasgassem e corressem. Assim, o predador e a presa. E foram dados à Lua, enquanto o solo, as montanhas e as árvores, foram dedicados ao Sol.
Da Mulher.
De todas as feras, de todas as garras, foi escolhida a mais perfeita filha da Lua e feita à imagem das donzelas, mas com o coração das bestas selvagens. E sua beleza foi tão grande que tomou o que restava de palavras dos poetas, que lhe reservaram o único destino imposto: o de ensinar ao mais jovem e não deixar que se perdesse. Assim, à mulher, foi dado o dom das palavras e de inspirá-las e moldar sua forma na escuridão refletida dos poemas esquecidos. E a mulher, feita de lágrimas e garras, suspiros e solidões, cavalgou os animais e os domou, para que não devorassem o filho do Sol.
Do Homem.
Do cerne das montanhas e das rochas inflexíveis, da madeira que se curva, foi arrancado a forma de um amante perfeito para que estivesse à altura da mulher. Assim, nasceu o filho do Sol e do sal, do solo e da gema. E a ele foi entregue a casca da mais velha das árvores. Assim era rígido no exterior e não se dobrava ao vento. E por isso mesmo chorava quando a Lua surgia, por não haver o que resistir nem formas de se expressar. E a mulher, cumprindo seu juramento aos poetas, inspirou o homem às palavras e o ensinou a usá-las, para que não se perdesse no desespero da solidão. Mas no início sua língua era áspera como o carvão. E ao homem as donzelas deram o dom de moldar e resistir, desde que o ensinasse à mulher, para que ambos se tornassem completos e não dependessem um do outro.