segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Gênese

Primeiro o firmamento.
Incontáveis donzelas, levadas em sacrifício em nome de Deuses esquecidos, deitadas lado a lado. Um desespero mudo, conformado, os membros torpes, os olhos secos. Seus corpos moles se tornaram maciez arenosa. Corações duros, a rocha inquebrável. Dos ossos brancos o diamante e dos olhos verdes as esmeraldas. De seus cabelos, escuros, o tronco das árvores, a relva fresca.

Em seguida, os mares e as águas. As montanhas.
Todos os amantes desesperados, virgens por suas donzelas, famintos e perdidos. As lágrimas salgadas cobriram os vales e os abismos mais profundos e seus suspiros fizeram as marés, as ondas, os terremotos. Cobriram os cadáveres de suas amadas, em pranto franco; fugiam da separação da morte. E assim, as montanhas e montes altos. Da saliva de sua fome, de seu desejo inconsumo, brotou as nascentes dos rios.

O céu, as nuvens.
Os cigarros de mil poetas e tantos boêmios: assim as nuvens, espiraladas, sopradas por pulmões doentes e hálitos azedos. Com elas, foi-se todo sentimento volúvel, entre o humor negro e a leveza da paz; entre a raiva trovejante e o medo de amar. Todos os furacões e brisas, vieram dos sussurros declamados, dos suspiros doídos, dos gritos amargos. O ar que respira é poesia.

Do sol. Da lua. Da noite. Do dia.
Da mais ardente paixão (todos os Tristãos, todas as Isoldas) foi arrancado o fogo vivo, incinerante e então tornado em bola, levada ao céu pelos ventos dos cigarros. O calor e a luz, aqueceram toda a criação. Mas de onde foi tirado a paixão, restou a solidão fria e uivante, que preencheu o espaço entre o calor e o firmamento. E como a solidão, que busca e afasta a paixão, a escuridão buscou se aproximar do sol e o sol se afastou da escuridão e assim os dois dançaram sobre o espaço vazio pela primeira vez. Quando a solidão se abateu sobre os poetas, foi-lhes tirada toda inspiração e posta num pedestal prateado para refletir o amor. E assim a Lua, que faz cães uivar, rouba o brilho do sol, mas permanece fria, na escuridão solitária.

Bestas e feras.
O sémem de todos os amantes virgens, espalhado pelo vento e pelas águas, fecundou o solo, mas não sem se misturar e se retorcer, tomando formas diversas. E os poetas, vendo que nova vida se formava, inventaram-lhe sons sem sentido, que chamaram de nomes. Também separaram as formas pelos sons, que lhes moldaram garras e cascos, para que rasgassem e corressem. Assim, o predador e a presa. E foram dados à Lua, enquanto o solo, as montanhas e as árvores, foram dedicados ao Sol.

Da Mulher.
De todas as feras, de todas as garras, foi escolhida a mais perfeita filha da Lua e feita à imagem das donzelas, mas com o coração das bestas selvagens. E sua beleza foi tão grande que tomou o que restava de palavras dos poetas, que lhe reservaram o único destino imposto: o de ensinar ao mais jovem e não deixar que se perdesse. Assim, à mulher, foi dado o dom das palavras e de inspirá-las e moldar sua forma na escuridão refletida dos poemas esquecidos. E a mulher, feita de lágrimas e garras, suspiros e solidões, cavalgou os animais e os domou, para que não devorassem o filho do Sol.

Do Homem.
Do cerne das montanhas e das rochas inflexíveis, da madeira que se curva, foi arrancado a forma de um amante perfeito para que estivesse à altura da mulher. Assim, nasceu o filho do Sol e do sal, do solo e da gema. E a ele foi entregue a casca da mais velha das árvores. Assim era rígido no exterior e não se dobrava ao vento. E por isso mesmo chorava quando a Lua surgia, por não haver o que resistir nem formas de se expressar. E a mulher, cumprindo seu juramento aos poetas, inspirou o homem às palavras e o ensinou a usá-las,  para que não se perdesse no desespero da solidão. Mas no início sua língua era áspera como o carvão. E ao homem as donzelas deram o dom de moldar e resistir, desde que o ensinasse à mulher, para que ambos se tornassem completos e não dependessem um do outro.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Se eu cair de bêbado,
me deixem onde eu ficar:
que a sarjeta seja meu cosolo,
que cure meus enfermos.
Volte ao jogo do galo,
ao botequim que te compete.
A minha noite terminou.

Termine a sua como bem entender,
mas faça com que seja bom.

domingo, 16 de junho de 2013

Passagem

Cresce a barriga,
encurtam-se as horas.
O restante é sempre
menor que o outrora.

Se o tempo não passa,
a estrada ainda é curta,
os mortos poucos,
a cerveja farta.

Nem delicadeza ou cortesia
indigna autor ou autoria:

não gera sorriso,
não faz nascer
poesia que preste
ou verso de morte.

Vou é falar sem sentido,
vou é beber sem motivo,
viver os tropeços sozinho,
rachar a conta comigo.

Deixo a raiva
cair no papel
pra acordar amanhã
sem ressaca.
Deixo o grito
virar prosa
pra depois
não sentir o aperto.
Faço da Rosa
o destino,
pra não ficar sem rumo.
Faço da solidão
uma linha,
pra não encher um caderno.

Volta em meia hora
e retomo o barulho de ontem,
recebo o bagulho de outra
e repenso a saudade de fora.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Ofício

Não sou poeta.
Só um vagabundo
com língua treinada
e gosto pra mentira.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Inconcluso

Num dia quente
de clima frio,
sem despedida alguma
a estrada alarga.

A falta que sente
é o afogar num rio.
Despedaçar a pluma.
Envergar a carga.

É uma explosão
em preto-e-branco.
Um abraço manco,
pra não conter o pranto.

Perder o chão é fácil,
difícil é achar de novo.

Quebrar a rima
faz parte da sina.
A encruzilhada,
perdida
não separa,
aproxima.

Sobra um medo
do que não foi dito
de não ouvir o segredo
de ver o final, afinal.

Aos calos, o brinde.
Aos anos, o grato.
Aos outros, os danos.
À noite.

domingo, 7 de abril de 2013

Narrativa Anacrônica

Acredito, hoje, que serei capaz de revisitar todos os instantes semi-esquecidos, ocultos no fundo da memória. Não ficarei preso ou sujeito a eles, mas os somarei ao consciente e ao inconsciente, com isso criando um ciclo interminável de momentos novos e ao mesmo tempo antigos e, dessa forma, atingir um estado de consciência fora do tempo, unindo todas as permanências em um só instante.

sábado, 2 de março de 2013

Hálito de Cigarro


 O cão está preso às sarnas,
 o corvo ao negro das asas,
 o dia segue no turvo das águas.

O tempo não poupa imagem
de santa ou diaba.
É tudo bobagem.

O vento das palavras
vale menos
que a brisa da tarde.

Velhas virgens
guardam os caminhos das vagens
selvagens mulheres.
Posso vê-las,
mesmo que não saia de casa.

Não temo morte
ou lavagem que seja
(do estômago, da alma),
mas não passo nem perto
do aterro,
o nosso primeiro beijo.

Se um dia dobrei a esquina
sem te ver
é porque tive medo.

Os olhos de seda
(verde, tão verde)
são piores
que a língua afiada.

Me corte com as unhas,
o dente, a boca,
mas não olhe meu rosto.

Não sinta remorso.

Não esqueça meu gosto.

Se pedir desculpas,
não esquenta:
o vento da boca
não vale
o bafo escroto.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Carnaval Passado

Quando ele se despediu, ela chorou. Ficou triste, não quis mudar. Queria que as coisas continuassem como sempre tinham sido, a mesma distância (próxima), o mesmo beijo (de língua), o mesmo cigarro (mentolado). Ele ouviu o ecoar de profecias antigas: "mulheres chorarão por você" e seguiu, sabendo que cumpria seu destino.

O ano passou e o carnaval matou todas as vontades, deu espaço pra todas as maldades e maldizências, alimentou todas as verdades, com todas as máscaras. (Porque carnaval é tempo de vontades, maldades e maledicências, de verdades mascaradas). A distância era parca, os beijos eram soltos e o cigarro era doce, mentolado.

Ela seguiu em frente, abriu espaço na vida, fez a própria folia e cantou na sua festa. Tinha o mesmo nariz alongado, as mesmas covas de felicidade nas bochechas, o mesmo castanho nos olhos. Mas o brilho era outro: de tempo que passou, de noites sem estrelas, de dias sem bandeira, de porres, estrada encarquilhada e bem seguida. Tinha um brilho seu. E ele viu que seus carnavais já não eram os dela, que o seu beijo tinha gosto de outra. Ela não fumava. Soube, então, que a vida tinha lhe feito bem, que ela tinha seu lugar sem ele.

Não chorou (mas devia, como devia) a falta de falta que tinha feito. Seus carnavais ainda eram os dela.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Os Idos de Maio



            Um cigarro, filho mais novo e, portanto, mais protegido, coçava no fundo do bolso. A chuva era sentida, antes de ouvida, num esparramar de lágrimas doces que se perdiam na enxurrada próxima. E talvez as lágrimas dessa estirpe devam ser deixadas pra enxurrada mesmo, pra ser levadas pro esgoto, pro rio e pro mar e só então ficar salgadas.
            A cerveja estava gelada, mas a pinga é que fazia o caso: pra esquentar as tripas e soltar a língua. Ele fingia que não tremia; ela fingia que não via. Tinham trocado os pormenores da vida naquele encontro acidental. Quem casou, quem se foi, quem arranjou emprego na padaria, quem seguiu em frente. Falaram dos dois, do que tinha sido, do que tinha ficado, de quem tinha passado.
            Haviam se esbarrado assim, num acaso de Maio.  Na chuva de surpresa (seria surpresa mesmo?) ele correu pro bar mais próximo. Antes de pedir uma cerveja a viu lá, sozinha. Como ele esperava o aguaceiro baixar pra pegar o ônibus em segurança. Se sentaram juntos, de frente um pro outro. Falavam dos tempos de outrora, da época de ouro, de quando eram calouros.
            - Lembra da primeira vez que a gente saiu?
            - Lembro. Foi no parque. Você já me enrolava desde o início do semestre.
            - Então. Lembra da gente sentado na beira do laguinho e do sol?
            - Não lembro de tudo...
            - Enfim. Nem eu. Mas eu lembro do beijo.
            - Que beijo? Nosso primeiro beijo?
            - É. Lembra de como você me olhou? Do que eu falei do verde dos seus olhos?
            - Disso eu lembro... – já meio sem ar, corada. Mas ela corava fácil. Era daquelas pessoas que ficava rosa com o mínimo de sugestão emotiva.
            - Então. Eu não lembro direito.
            - Como assim?
            - É. Não lembro mesmo. Esqueci completamente dos seus olhos, sabe? – Saboreou o triunfo por uns segundos curtos. A confusão dela era inebriante. – Mas lembro é de outra coisa.
            - Ah, é? Do que, então?
            - Lembro do seu suspiro. Meio que um alívio, meio que uma dor. Um treco sonoro, mas leve, sutil.
            - Eu não lembro...
            - Eu sei que não. Porque aquilo é uma coisa sua que eu peguei pra mim. Só pra mim, sabe?
            A chuva passou. Ele esperou que ela entrasse no ônibus e pediu que avisasse que chegou em casa bem. Sempre pedia aquilo. Prometeram se encontrar de novo, pra um cinema.
            Não se encontraram mais.

sábado, 19 de janeiro de 2013

 Vi uma menina uma vez. Talvez fosse bonita, mas não me lembro mesmo de como era o rosto dela. De qualquer forma, não foi o que me chamou a atenção. Era a forma como ela apoiava o pé direito no banco da frente do ônibus às duas da manhã.
 Passei meses tentando escrever um texto sobre aquela cena, sobre os sons que eu ouvi no fundo do ônibus, sobre o breu no lado de fora, as ruas calçadas com pedra de Belo Horizonte, a embriaguez dos passageiros, o silêncio que eu imaginei quebrar (mas nunca quebraria, nunca me dirigiria a ela assim, nunca a exporia a mim). Mas não consegui nenhuma linha que preste.