terça-feira, 4 de agosto de 2015

O Ideal da Cavalaria

Quando visto esse colete é que fumo. Uma roupa feita de fumaça. Dentes tornados cigarro. Uma língua por cinzeiro. Eu durmo vestido, Tomo banho vestido. Se uso capa é por cima da fumaça. Maço por escudo, isqueiro por lança. Pronto, estou armado contra o mundo. A tática é incomum: serpente e leão. Força, velocidade e brutalidade. Um estilo que fere ao proteger.

Me sagrei cavaleiro por conta própria. Fiz minha vigília no bar, me ajoelhei no asfalto, tocaram meu ombro com um casco vazio. Das cinzas não renasço, não cato os cacos. O que vem dos restos é a escória, o lixo reciclado: isso não serei. Ou me aprimoro ou morro. Não refaço o que restar da total aniquilação, acabo: numa derradeira barricada, no fim da última batalha quando os portões se fecharem, sob a luz das estrelas apagadas.

Não combato pra vencer, mas pra morrer, restar cinzas, espalhar urnas, reconstruir ídolos. Refazer heróis é a minha sina. Se pareço desconstruir é porque a essência é deturpada na forma, porque o símbolo está desgastado. É megalomania querer restaurar o mundo, preservar a honra, ressuscitar os mortos.
           
Minha Alice não voltou do país das maravilhas. Blackthorne morreu no naufrágio. Aragorn não foi coroado. Artur é um mendigo. Gilgamesh, um gerente. Imperatriz Criança é atendente de MacDonald's. Cavalguei com Theóden para a morte, arranquei o tesouro do dragão junto com Siegfried. Me sacrifiquei com Aquiles por uma guerra sem sentido.

Foi o orgulho dos homens que me matou. A inversão da moral, a proclamação da república, a guerra do Paraguai. Meu Ragnarok foi a pós-modernidade. Nasci desgarrado de meu tempo primário, do diabo ativo na peste negra, das profecias de São Malaquias. Sou da espingarda polida, bomba atômica. Quando cota-de-malha é Kevlar, quando bravura é favela.

A falácia que me mantém de pé, a verborragia que me guarda a fé. O niilismo que me protege a alma. É uma crise da mediocridade. Sou produto da contemporaneidade, essa coisa covarde desde Napoleão. Sou ocidente, sou cheque especial. Sou futuro irrealizável. Sou conta a pagar.
           
Nada mais banal que a loucura.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Verão

No raio de sol, a viagem é mais limpa.
Não tem a sujeira do armário velho,
poeira sobre a casca do escaravelho,
ou a cozinha manchada de tinta.

Sem os fantasmas, o assombro é outro:
no vermelho do horizonte distante
alcançado para além do sextante
onde montanhas a beijar o Poente.

Não é da boca que sai a paixão:
calada a caneta, rabisca perene.
Assume o papel de língua esperta
esgrime contra o peito deserto.
     
Te quero desperta.
Pra ouvir o som mudo da chuva,
se vestir de trovão na manta,
soprar terremotos no ventre.

Nem que seja pra não sentir frio,
mesmo que passe pela rodovia em curva,
apesar dos desvios em nossos destinos.
     
Escrevo cartas silenciosas
carregadas por pipas ao vento.
Meu relógio parou faz uma hora
e não sei se você volta.

É como o passar das estações
quando o inverno aguda o verão.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Capuz de Bandido

Agarrava minha mão com força,
beijava de mordida armada,
não perguntava se era amada.
Desmontava a minha cerca.

Jogava póquer se apostando.
Trancava a porta e sumia,
se jogava da janela quando
enjoada do som da boemia.

Não penteava os cabelos,
esquecia pra trás os chinelos,
e me matava de desespero
com seu amor efêmero.

Eu, que sou dos meus silêncios,
que nunca saí do lugar, reverencio
esse espírito de fogo livre
saído d'um sonho que tive.

Agora me esquece, indolente,
como se eu fosse carnaval.
Sai em busca do vendaval
deixando a mesa, inadimplente.

Agora me leva, temerária
à borda do despenhadeiro:
me ameaça, usurária,
por ti viro bandoleiro.

Assaltar as estradas cruas,
dedos soltos, mãos nuas
pra resgatar pedaço mofado:
esse meu peito inchado.

Feito cadáver no deserto
devoro vermes de areia
só pra te converter a atéia:
me expulsa de peito aberto



segunda-feira, 27 de abril de 2015

Beijo Roubado (Ou: O Fantasma de Dickens)

            A Carol era uma menina linda. Tinha cabelo de cachinhos e olhos que mudavam de cor em dias chuvosos. Usava anéis em todos os dedos e camiseta dos Ramones por baixo do uniforme. Nunca falava comigo, nem com ninguém com quem eu andava. Era a minha paixonite durante a sétima série e tinha o dom de sempre aparecer quando eu era rejeitado para o time de futebol na educação física ou então quando eu derramava coca-cola nas calças. De todas as paixões da minha vida, ela foi a mais secreta, porque eu não tinha coragem nem para olhá-la, evitava o seu nome.
            Foi a primeira vez que reencontrei uma paixonite de colégio quando ela passou por mim com um grupo de amigas, rindo de uma cena ridícula, dessas típicas de quando se reúne gente bêbaba sem pretensão de maturidade. O protagonista da cena, claro, era eu. Disputava um concurso de vira-vira com uns calouros da faculdade enquanto tentava acender um cigarro pelo lado do filtro.
            Apesar do ridículo mundano,  senti como se fosse visitado pelo fantasma do natal passado, de Dickens; um momento de resignificação filosófica, de reavivamento do passado, vendo a história viva bem à minha frente como um espectro de carne e osso saído de um sonho que tive na aula de Historiografia.
            E ela pareceu não me notar. Ria da palhaçada toda, mas não me reconhecia.
            Ganhei aquele concurso no final das contas e achei que aquele fantasma não mais me assombraria.

            Passei a ver a Carol às vezes no corredor da faculdade ou na fila do xérox, mas nossos olhos nunca se encontravam. Nunca dissemos bom dia um pro outro. Ela não usava mais camiseta de banda e nem tinha os tantos furos na orelha quanto na adolescência. Eu ainda era magricela, de óculos, calças desbotadas. Ainda tentava ler Niesztche e Marx escondido e Homem Aranha às claras.
            Por vezes ela se sentou ao meu lado na cantina, sozinha, enquanto eu esperava o início de um período de aulas acompanhado por um café ruim. Nessas horas eu mantinha a atenção ferrenha em algum texto ou trabalho que estivesse preparando para apresentar.  Não que eu estivesse ocupado demais, eu tinha era medo de olhá-la.
            Só que dessa vez não era paixão. Era a estranheza de sentir um passado tão próximo ao presente. Era ver ruir a crença de que eu tinha mudado desde os catorze anos, era me sentir de novo o moleque desajeitado no pátio do colégio, com o coração ardendo por um beijo, fingindo que não ligava para o som de um nome martelando na testa.
            Ela era a lembrança viva de tudo o que eu achava ter esquecido, da pessoa que eu acreditava ter superado. O choque do ontem com o hoje e o contraste de dois momentos que eu julgava tão diferentes na minha vida. Assim eu me agarrava, inconsciente, ao que, de fato, era novidade em mim desde aqueles tempos: fumava. Todas as vezes que ela aparecia, acendia um cigarro. O sujeito do xeróx sempre me olhava puto e os seguranças, quando me viam, pediam educadamente para eu, ou apagar o bendito, ou sair do corredor fechado. Ainda assim ela não me notava. Tirando uma vez que fez uma cara feia pra fumaça que eu admirava espiralando no ar frio de junho. Mas aí ela notou foi a fumaça.
            A Carol sempre andava com uma turba de amigas barulhentas e bonitas. Nunca descobri que curso ela fazia ou sequer se estudava com essas amigas. Eu já tinha tomado toco de metade delas, depois de ter ficado com uma certa Alice, que parecia ter alguma relação com uma delas. Eu nunca soube se era porque a tal Alice tinha me marcado como gado dela ou se porque eu dei o bolo num dos outros encontros com ela, porque eu tinha começado a namorar.
            Aliás, eu namorava quando vi a Carol de novo. E namorava sentindo aquela aproximação do meu passado. Fingia que não me borrava de medo do momento em que as duas estivessem num mesmo ambiente, porque aí quaisquer mentiras que eu contava para mim mesmo seriam postas à prova, me revelando como o sujeito desprovido de intenções e ambições de seis anos antes.
            Acho que era o conflito que todo mundo sente ao analisar o passado sob uma perspectiva diferente da época em que viveu. E, quando é sobre você, não existe análise clínica que salve a imparcialidade. É medo de não só se ver despido, mas de se descobrir no ridículo do próprio íntimo.
            Assim sobrevivi ao semestre e me vi confortável, aos poucos, na situação. Afinal, se a Carol não se lembrava de mim, que passado havia para ser desnudo? Enquanto eu pudesse manter as lembranças dentro, o passado era um fantasma mudo e invisível, uma mera presença que se tornava cada dia mais débil. A Carol ia fazendo parte do presente: da miríade de rostos semi-conhecidos que mudavam como um caleidoscópio que forma imagens que a gente nunca se lembra muito bem de como eram.
            Tão relaxado que fiquei, acabei cometendo um único deslize ao verbalizar o que ninguém sabia, ninguém tinha como saber e não devia saber: que eu conhecia a Carol. Foi um amigo que disse que estava afim "da loirinha bonita". Estávamos jogando truco num boteco, comíamos o pior frango empanado que já saiu de uma panela e bebíamos a cerveja mais gelada e barata da cidade.
            "Quem é essa?"
            "Você não conhece. Uma bonita, é da sala da Alice, que você pegou no festival de inverno do ano passado."
            "Uma que veio de transferência? Conheço sim."
            A apropriação que o sujeito fez me irritou na hora. Como ele ousava dizer que eu não conhecia ela? Como tinha a pachorra de desconstruir o passado que queimava tanto na minha memória, mesmo que em segredo absoluto? Um passado tão presente e de tormento tão constante que já fazia parte de quem eu me tornava?
            "O nome dela é Carol. Conheço. Estudou no mesmo colégio que eu."
            O assunto ficou por aí depois de uma exclamação de desinteresse por parte do meu amigo. E, naquele dia, eu pensei bastante sobre a importância que eu dava pra uma menina que nem ao menos sabia meu nome e uma importância que, eu tinha certeza, era desprovida de paixão. Era só uma neurose minha, que devia ter mais a ver com uma crise de identidade típica dos vinte anos do que com o drama de um segredo esquecido, de um fantasma. Afinal, o que era a Carol pra mim? Não era nada. Tinha sido um sentimento reprimido, mas que eu tinha esquecido com o passar dos anos. Tinha afogado com outros amores.
            E aquilo me relaxou, apesar de o meu parceiro de truco ter ficado desconsolado com a minha desatenção reflexiva, que resultou na nossa derrota por lavada. Nem me importei quando o amigo me disse que ia levar a Carol pra quebradeira de fim de semestre. Achei bobagem o meu medo de ver a a menina e a minha namorada sob o mesmo teto.
           
            Já tinha deixado essas coisas pra lá quando entrei na tal quebradeira de mãos dadas e camisinha no bolso. Assistia ao show, quando o tal amigo chegou na festa, sozinho, e veio me cumprimentar. Na hora a namorada conversava com uns amigos de quem eu não gostava. Acabei perguntando:
            "Cê não vinha acompanhado, cara?"
            Ele me explicou que o esquema parecia não ter dado certo, mas que ainda ia colocar todas as fichas numa última investida quando ela chegasse. Desejei boa sorte e conversamos sobre o campeonato brasileiro e sobre as outras mulheres na festa, sobre as notas que tinham saído e sobre o último filme do Almodóvar, que não tinha sido tão bom quanto os outros.
            Lá para tantas da noite, eu e a minha namorada estávamos brigados e ela tinha ido embora puta da vida comigo, que insiti em ficar, dizendo que aquilo não ia estragar minha noite quando era só uma desculpa para ficar muito bêbado e remoer a raiva. Tinha saído pra fumar e já estava no segundo cigarro seguido quando alguém parou ao meu lado e me olhou fixamente, causando aquele incômodo de ser observado que só piora quando a gente tá com raiva.
            "Eu acho que te conheço de algum lugar."
            A Carol chegava, como sempre, nos momentos em que eu me sentia mais idiota. E o pior! Escolheu justo aquele pra se lembrar de mim e vir conversar. Olhei pra ela, meio sem paciência e respondi que também já a tinha visto antes.
            "A gente tem o mesmo período livre na Quarta. Você sempre senta perto do canteiro, fica de frente pra cantina."
            "Não, isso não. Eu te conheço da escola."
            Me senti estúpido por só ter notado então que ela tinha alisado os cabelos. Usava uma camiseta dos Ramones, mas não era tão bonita quanto antes, quando tinha cachos. Franzi o cenho, fingindo pensar, enquanto olhava pro rosto dela, angulado com o queixo fino e o mesmo ar superior de quem conhece algum segredo valioso e não pretende dividir com ninguém.
            "Você tinha o cabelo diferente, né?"
            Ela riu, passando os dedos pelas mechas.
            "Tinha sim. Você também, aliás."
            Expliquei que tinha cortado o cabelo, que na escola era comprido, apenas alguns meses antes e ela respondeu que tinha ficado melhor. Como corei daquela frase vazia e sem pretensão! Mas estava escuro ou então eu já devia estar bêbado demais para que isso fosse confundido com a embriaguez do álcool.
            Fizemos um minuto de silêncio desconfortável. O meu cigarro pendendo inútil, porque eu evitava a careta de desgosto dela. Mas como o papo não parecia ter vias de continuar e ela continuava por lá, mandei um foda-se mental e traguei, soprando a fumaça para longe dela.
            "Tem um cigarro aí?"
            A pergunta dela atraiu a minha atenção. Tirei o maço vazio do bolso e mostrei como pra provar que aquele era o meu último. Ela olhou por cima do ombro, para onde a festa acontecia e as amigas estavam, onde o meu amigo esperava por ela sem chegar em mais ninguém, onde a minha namorada não estava mais. O fez como alguém que olha por cima do ombro antes de transgredir ou como uma criança fazendo arte.
            Sem mais nem menos, tirou o cigarro da minha mão. Eu percebi que ela não usava batom, que os seios tinham crescido, que não estava mais alta e que eu usava a mesma camiseta que usei no dia em que comecei a namorar. E ela fumou daquele jeito desconfiado, como se estivesse se escondendo ali, no passeio, de frente pra rua onde pessoas passavam.
            Me lembrei do que a minha namorada disse quando me apaixonei por ela. Que dividir um cigarro era coisa íntima. Só faziam os amantes mais apaixonados, as pessoas mais próximas. Que era como um beijo de fumaça, que desvanecia esquecido na noite até restar uma guimba apagada sobre paralelepípedos e a lembrança. E, justamente por não ter outras provas, já que as guimbas são recolhidas ao final de cada festa, é a lembrança mais verdadeira e o beijo mais ardente.
            A Carol sorria pra mim com os olhos, enquanto passávamos o cigarro um para o outro, como se fosse um baseado. Quando acabamos, ela fez questão de atirar a brasa ainda acesa à noite.
            "Não pode contar, tá? Minhas amigas acham que eu parei."
            Eu ri e prometi que não ia dizer pra ninguém.
            "Vai ser o nosso segredo."

            Entramos na festa juntos justamente quando uma banda começava a tocar, abrindo com "Come Together" e ela dançava pra mim.